ANEURISMA EM CRIANÇAS É RARO, MAS PODE ACONTECER.
A história da dor de cabeça é tão antiga que coincide com a existência do homem na terra. Através dos escritos sumérios e dos papiros egípcios, sabe-se que muitos antepassados sofreram desse mal. Na Bíblia, aproximadamente no século IX a.C, já existia a descrição de dor de cabeça. E nesse trecho bíblico, é descrito um episódio cefaleia muito peculiar e que merece nossa análise sobre os olhos da neurocirurgia. O texto se encontra em 2Rs 4,14-20.
“14 Então o profeta perguntou a Geazi: — O que se pode fazer por ela? Geazi respondeu: — Ora, ela não tem filhos, e o marido dela é velho. Eliseu disse: — Vá chamá-la. Ele a chamou, e ela se pôs à porta. Então o profeta disse à mulher: — Por este tempo, daqui a um ano, você terá um filho nos braços. Ela disse: — Não, meu senhor, homem de Deus, não minta para esta sua serva. A mulher engravidou e, no ano seguinte, no tempo determinado, deu à luz um filho, como Eliseu tinha dito. O menino cresceu e, certo dia, foi encontrar-se com o seu pai, que estava no campo com os ceifeiros. De repente ele disse a seu pai: — Ai! A minha cabeça! A minha cabeça! Então o pai disse a um dos servos: — Leve-o para a mãe. Ele o tomou e o levou para a mãe. O menino ficou sentado no colo dela até o meio-dia, e então morreu.”
Quando eu analiso cientificamente o caso clínico apresentado nesta passagem, me deparo com quadro clássico de dor de cabeça, específico de uma patologia. O primeiro ponto a ser destacado é a característica do início da cefaleia: DE REPENTE. A expressão “de repente” significa um evento súbito (de modo repentino, inesperado ou imprevisto, de uma hora para outra), e toda vez que nos deparamos com uma cefaleia súbita, a primeira hipótese tratada é de doença cerebrovascular, como um derrame, por exemplo.
Outra expressão que ajuda a direcionar o diagnóstico é a usada pelo menino para descrever a dor “Ai! A minha cabeça! A minha cabeça!”. A associação do ponto de exclamação em todas essas frases nos remete claramente a outra característica da cefaleia: fortíssima intensidade. Ao ler essa passagem é possível imaginar esse menino sofrendo com uma dor excruciante como se sua cabeça fosse explodir.
Em seguida, provavelmente já em um estado inconsciente, tomado pelo servo do pai e encaminhado aos braços da mãe, o menino - pouco tempo depois veio a óbito. As expressões que falamos anteriormente, que descrevem seu início e sua intensidade da dor de cabeça, associado à velocidade em que tudo ocorreu, direciona para uma cefaleia secundária de causa vascular, sendo a hipótese mais provável: ANEURISMA CEREBRAL.
Diante dessa história, um questionamento surge: “Dr. Penzo, CRIANÇA PODE TER ANEURISMA CEREBRAL?” SIM, apesar de incomum, as crianças também podem ser acometidas por aneurisma cerebral. Vou descrever a partir de agora 6 curiosidades sobre aneurisma cerebral nas crianças:
1 - O aneurisma cerebral na população pediátrica representa apenas 1% de todos os casos de aneurisma cerebral. Na literatura, temos apenas cerca de 700 casos relatados.
2 - Os meninos são 2x mais afetados do que as garotas. Observe que interessante, esse dado coincide justamente com o relato de caso publicado pela Bíblia.
3 - O aneurisma intracraniano em crianças é mais frequentemente localizado na vasculatura periférica (isto é, em uma posição mais distante do vaso), quando comparado ao aneurisma dos adultos que costuma ser localizado nas porções mais proximais dos vasos. Esse fato pode ser justificado pela associação entre trauma de canto e aneurisma cerebral nas crianças, pois é essa porção distal do vaso que está mais exposta quando existe um traumatismo, pois encontra-se muito próxima do osso. Aneurismas traumáticos, que surgem após traumatismo craniano fechado, como acidente de carro, ou penetrante, como um tiro, compreendem quase metade (14–39%) de todos os aneurismas pediátricos.
4 - Uma grande variedade de doenças pode estar associada ao aneurisma cerebral em crianças, podendo-se destacar entre elas: tumores cerebrais, endocardite, anemia falciforme e doenças do colágeno como a Síndrome de Ehlers-Danlos.
5 - Os aneurismas pediátricos têm maior probabilidade do que os aneurismas adultos de serem complexos, com envolvimento não somente de uma falha pontual da artéria como também podendo acometer a artéria como um todo. Esses aneurismas complexos chegam a constituir até 50%.
6 - A forma mais comum de apresentação dos aneurismas na população pediátrica é o sangramento decorrente de sua ruptura. E isso nos leva à sexta e última curiosidade: crianças são mais resistentes que os adultos. Quando comparado à população adulta, as crianças com hemorragia decorrente da ruptura de aneurisma cerebral parecem ter um risco menor e uma tolerância maior as complicações desse sangramento. As crianças morrem menos que os adultos após hemorragia aneurismática, com uma mortalidade variando de 10% a 20%, ao passo que nos adultos chega até 80%.
Ao longo da minha carreira de neurocirurgião e neurorradiologista intervencionista me deparei com 4 casos de aneurisma cerebral em crianças. Um dos casos foi uma criança de 4 anos de idade que operamos um tumor cerebral (craniofaringioma) e que em exames de rotina durante seguimento, descobrimos um aneurisma na artéria cerebral média no mesmo lado que foi feito a cirurgia dele. Esse caso nós o tratamos com uma cirurgia para excluir o aneurisma, e a criança ficou muito bem. Os outros três casos, o diagnóstico foi realizado através de um sangramento, isto é, somente após o aneurisma ter se rompido. Nesses três casos em que houve o sangramento, os pacientes infelizmente morreram assim como na passagem bíblica de 2 Reis.
Além do conhecimento adquirido nesse artigo, eu gostaria de deixar e enfatizar duas lições para todos nós:
1 - A exceção à regra existe. Apesar de raro, devemos - e quando digo “devemos", me refiro tanto aos profissionais médicos quanto aos familiares - devemos ter em mente a possibilidade diagnóstica desta doença tão grave, se apresentando também na população pediátrica.
Você colega profissional que me assiste, se houver qualquer suspeita de cefaleia secundária, não deixe de pedir um exame de imagem. E você, pai ou mãe que assiste a esse vídeo, não deixe de encaminhar seu filho para uma avaliação se ele passar a reclamar de dor forte na cabeça ou se apresentar qualquer alteração do nível de consciência.
2 - O profeta ressuscita a criança. Apesar de não ler a continuação do texto, na sequência, o profeta Eliseu faz uma oração e ressuscita o menino. Hoje em dia temos a medicina ao nosso favor que evoluiu muito, mas existem situações que mesmo diante dessa evolução, ficamos reféns da gravidade do caso. Porém, mesmo quando a medicina não puder mais agir, não perca fé. Afinal, assim como existe exceção à regra para o aparecimento de uma doença, existem os milagres que transcendem tanto a regra como a exceção, existem os milagres que vão além da compreensão. Portanto, tenha fé!
Se você gostou desse texto, deixe seu comentário e compartilhe essa informação! A mesma bíblia que descreveu o caso desse menino com aneurisma cerebral, comenta que a falta de conhecimento resulta em destruição. Por isso, vamos propagar o conhecimento, e eu conto com sua ajuda.
O conteúdo desse artigo também está no nosso canal do Youtube, em formato de vídeo, facilitando ainda mais o compartilhamento de conhecimentos. Quanto mais pessoas tiverem entendimento sobre o assunto, maior vai ser a conscientização da importância do tratamento precoce e preventivo.
As doenças cerebrovasculares são complexas e necessitam tanto de tratamento adequado quanto de prevenção. Portanto, agende uma consulta para garantir que tudo está bem ou, na pior das hipóteses, tratar o problema antes que aconteça algo pior. Nossa equipe fica a disposição para auxiliar você no cuidado do maestro do seu corpo: seu cérebro.
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